A serena lucidez dos dias amargos

<em>AO CONTRÁRIO DAS ONDAS</em>

Domingos Lobo
O que define um grande escritor, o que o torna singular, é a capacidade prospectiva de inscrever no imaginário dos seus contemporâneos atmosferas de conteúdos metafóricos que os designa, irmana e identifica colectivamente. Urbano Tavares Rodrigues, como Saussure, ao abordar o sistema de signos que orientam as sociedades modernas, rejeitando os estereótipos, sabe ser possível enquadrar a denúncia dos universos conceptuais da burguesia, em valores abrangentes e perenes. Urbano, ao incluir a denúncia do sistema capitalista – fazendo uma análise de raiz marxista – na estrutura da intriga, percorrendo na narrativa, com engenhoso processo distanciador, o fundo dos relacionamentos humanos, seus êxtases e declínios, atinge, pela subtil lucidez da sua arte de contar, um claro e contextualizado discurso clássico e universal.
Urbano, nunca perdeu, ao longo de mais de cinco décadas de escrita, a trajectória interventiva, o olhar sereno e atento ao real, eivado de uma visualidade poética que a sua obra, plenamente, denuncia.
Com uma obra que na ficção atinge, com este Ao Contrário das Ondas, 41 títulos (caso raro e incontornável na nossa actual literatura), Urbano ainda consegue o prodígio de nos surpreender, de nos manter suspensos da tessitura ínfima com que encena e modela a arquitectura romanesca, à essência de uma fala que percorre o nosso mais íntimo estremecimento, nos deslumbra e seduz mesmo quando traça os contornos da farsa, das máscaras e da cupidez: «Ninguém sabe quantas vezes ao longo da vida fui assaltado por imundos desejos, como o de querer a morte do meu superior hierárquico (para poder ocupar rapidamente o seu lugar) ou ansiar o desaparecimento de um parente rico e idoso, que talvez me tornasse milionário de um dia para o outro – fulgurações instantâneas e logo repetidas, em desacordo com a ideia que os outros têm do meu carácter e eu próprio, vamos lá, também tenho, em comparação com a maioria, sabendo-me embora sujeito a visitas do monstro que a todos nos habita.» (Pág.70).
Mesmo no desbragado erótico da libido convulsa de Mafalda, a fala de Urbano, roçando os códigos libertinos, nunca assoma a vulgaridade: «Nem tu sonhas, Lívio, que eu tenho o orgasmo difícil e para o conseguir ao teu lado, por baixo ou por cima e às vezes longe de ti em pensamento, imagino-me com estranhos, homens e mulheres, caras conhecidas ou simples corpos, bronzeados e violentos, que me submetem a todas as vergonhas, até eu conseguir as ansiadas contracções.» (Pág. 42).
Urbano penetra, como nenhum outro escritor português contemporâneo, esse esquivo «céu da burguesia», de que fala Barthes, para nos revelar o lodo da estruturante ideológica que o sustém, vocacionada para a alienação e para a usura. Concomitantemente, o autor vai definindo os mecanismos que criam as dependências e vão subvertendo o tecido social das democracias, sem panegíricos morais nem redundâncias espúrias. Urbano caminha, com alguns dos seus personagens, "de mãos dadas com o perigo", como escreveu Sophia, inscrevendo texto a texto, com a lâmina na boca, a coerência de um percurso, a afirmação sem mácula de um ideário generoso e solidário: continuado e brechteano apelo à razão e à justiça.
Lídio, é o retrato amargo e desencantado de uma certa esquerda, um "Fausto" de passagem – capaz, no entanto, de arrependimento e sublimação – a derruir no vasto e entediante círculo de ambições, de baixezas, de mediocridade ufana em que se dilacera e perde a nossa democracia.
Há, paradoxalmente, no desencanto que perpassa Ao Contrário das Ondas, um substantivo optimismo, a certeza no património moral da humanidade; a busca de um justo sentido para a vida: «Ao menos sonhar que intervenho, que esta pouca coisa que sou ao menos empurra nem que seja ao de leve os mecanismos da mudança.» (Pág.124). Mesmo na complexa penumbra que cerca as sociedades capitalistas, há ainda lugar para a esperança: «O mundo foi sempre afinal dos mais poderosos, dos mais ricos. Mas Cristo e Francisco, Marx, Gandhi e Guevara vieram dizer-nos que não e apontar outro horizonte.» (Pág.124).
Pelo corpo de Ao Contrário das Ondas, anda a nossa história recente e muito do nosso sangue, na serena lucidez da fala que diz os dias amargos, desoculta os signos, nos íntimos rumores das paisagens que nos habitam e indicam os caminhos da matriz essencial. Neste admirável romance estão muitos dos sinais que precisamos para entender as nossas perplexidades: por vezes é necessário olharmos o pântano para reconhecermos o chão que nos pertence.
Um grande escritor é também um obstinado e inquieto domador de sofismas.


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